Privacidade: Direito ou Privilégio?

Mal aterrissava em Heathrow, aeroporto de Londres, e já precisava me preparar para os procedimentos investigativos de uma nova conexão. Enquanto meu foco estava em tentar me livrar de tudo aquilo que pudesse fazer apitar aquele hediondo aparelho, nem me atentava para o fato de que ali, naquele momento, uma pessoa absolutamente estranha estava me vendo, sem constrangimentos, exatamente como vim ao mundo.

Ao chegar ao destino, antes mesmo que as autoridades locais pudessem “inventariar”, eletronicamente, todos os meus pertences, fui interrompido por uma notificação do aplicativo “periscope” que me informava sobre uma nova transmissão (broadcast). Lá estava eu, de pé, num país europeu, aguardando as malas e vendo uma transmissão ao vivo, de uma boate na Tailândia. Gente dançando, beijando e se divertindo tanto que nem podia imaginar estar fazendo parte de uma programação invasiva, disponível para todo o mundo.

Desde 1948, com a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, o direito à privacidade e à intimidade é garantido, internacionalmente, às pessoas. No Brasil, lembro que a comemorada e atual Constituição Federal (de 1988), em seu artigo 5º, inciso X, também ressalta este Direito Fundamental. Mas, e daí?!

Seja em função de um amedrontador cenário da corrupção e do terrorismo (agravado pelo 11 de setembro de 2001) ou, simplesmente, pelos avanços tecnológicos alcançados pela sociedade, o fato é que, cada vez mais, temos visto em Estados Democráticos de Direito, a gradativa deterioração das mais fundamentais garantias da pessoa humana.

Podemos continuar falando em privacidade? No mundo corporativo, comunicações são interceptadas e ambientes são filmados, diariamente. Nas ruas, câmeras registram e identificam, a todo minuto, placas de carro, fisionomias e ações. Nossa vida privada é contada em verso e prosa, com riqueza de detalhes, pelas máquinas governamentais e seus famosos cruzamentos de informações.

Ser visto nu, ou explodir pelos ares? Ter acesso a tudo em tempo real, ou ser condenado a uma visão limitada do mundo? Eis a dicotomia que tem promovido poderosas mudanças na vida das pessoas, principalmente, quanto ao enfraquecimento dos conceitos de intimidade e privacidade.

Queiramos ou não, estamos diante de um caminho irreversível. E, por não ser possível pedir que o mundo pare pra gente descer, como sugerido pelo inesquecível Raul Seixas, só nos resta aceitar que a privacidade, como a conhecíamos, ainda que lutemos juridicamente pela sua manutenção, não tem mais espaço nos dias atuais.

 

* Haroldo Santos Filho é advogado e contador.

** Artigo de opinião publicado no jornal “A Gazeta”, em 07 de julho de 2015

Artigo_Privacidade_Direito_ou_Privilegio_Gazeta_07_07_15

As contas eleitorais

Não há democracia madura sem um processo eleitoral transparente e confiável. Tem sido esta a tendência demonstrada com o endurecimento nas regras impostas para a prestação de contas eleitorais, nos últimos pleitos.

E os rigores parecem aumentar ainda mais quando três “pesos pesados” se unem em torno desta questão. Pela lisura eleitoral têm trabalhado em uníssono o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB).

Um comemorado consórcio a partir do qual foi gestada a Resolução nº 23.406/2014 em que o TSE apresentou inovações que deverão nortear a arrecadação de recursos de campanha, a destinação dos gastos e a forma de prestar contas, com o objetivo de coibir ilícitos e reduzir possíveis diferenças provocadas pelo exagerado uso do poder econômico.

Agora, a prestação de contas só será validada se tiver sido “contabilizada” por profissional da contabilidade que, ao final, assina em conjunto com o candidato. Como fazem os Fiscos há anos, os Tribunais Regionais Eleitorais poderão experimentar grande economia de trabalho, que só é possível quando alguém vocacionado a prestar contas se responsabiliza pelo processo.

Igualmente acertado, a partir de então, candidatos e partidos deverão constituir advogados para que os representem judicialmente nos processos de prestação de contas partidárias e de campanha, cujo exame por parte do Estado assume caráter jurisdicional.

Todavia, talvez mereça atenção e cuidado um dispositivo na norma que prevê quebra de sigilo bancário e fiscal de candidatos, partidos, doadores e fornecedores, na hipótese de “indício” de ilegalidade. Parece claro o caráter abusivo de tal premissa uma vez que relativizar um direito fundamental, não contribui em nada para a construção de um Estado Democrático de Direito.

No geral, entretanto, combinadas à Lei “Ficha Limpa” (Lei complementar nº 135/2010), as ferramentas de fiscalização e controle do processo eleitoral brasileiro se aperfeiçoaram, ganhando contornos de credibilidade com a honrosa participação de contadores e advogados.

Mas, apesar de tudo isso, para avançar, o Brasil ainda continuará dependendo da consciência do eleitor na hora voto, cuja tarefa será garimpar um representante que tenha conseguido se destacar, imune às repugnantes práticas eleitorais que ainda vigoram neste país.

* Haroldo Santos Filho é advogado e contador.

** Artigo de opinião publicado no jornal “A Gazeta”, em 30 de julho de 2014

Artigo_HSF_Contas_Eleitorais_A_Gazeta_30_07_2014

 

Multa de trânsito e direitos fundamentais

Toda vez que o assunto é infração de trânsito, lembro-me da história do cidadão que estava sendo multado e não parava de ouvir sermão do agente, enquanto sua multa era lavrada. Até que ele se cansa e diz: “…seu guarda, vê se decide…ou o senhor multa ou briga comigo. Os dois, não pode não!…

Embora o trânsito no Brasil seja assunto da maior seriedade e que clama por medidas urgentes, a abordagem acima provoca, ainda que de forma descontraída, a reflexão para outro lado da mesma questão: o que o Estado pode e o que não pode fazer? Ou ainda, não estaria havendo abuso ou exagero na aplicação de multas de trânsito, nas regiões metropolitanas?

O advento da tecnologia (radares) e a desnecessidade legal de abordagem veicular para a lavratura do auto de infração são elementos facilitadores para que o poder público exerça o seu múnus regulador, porém podem também contribuir sobremaneira para a banalização desta sanção administrativa, distanciando seus efetivos objetivos da tão esperada função socioeducativa.

Além disso, acende-se um sinal amarelo toda vez que um autuado vê impedimento ou grande dificuldade de se defender de atos públicos. Alguns exemplos disso são multas pelos seguintes motivos: mudar de faixa sem dar sinal, dirigir falando ao celular, não usar cinto de segurança, não dar passagem a pedestre em faixa e tantos outros. Ora, se há presunção de legitimidade e veracidade por parte da administração pública ao dizer, a distância, que houve a infração, como pode o cidadão provar o contrário em relação ao alegado?  Como vislumbrar a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal em casos semelhantes?

O fato é que, por não conseguir produzir provas em sua defesa e por se tratarem de valores relativamente baixos, infelizmente, algumas multas têm sido pacificamente toleradas pela sociedade, gerando receita extra para os municípios que, por sua vez, agradecem e fazem o uso que bem entendem do dinheiro oriundo desta arrecadação.

O perigo de se transigir em relação às Garantias e Direitos Fundamentais de nossa Constituição é que grandes desmandos sempre começam de forma aparentemente “inofensiva”, exatamente como uma multa de trânsito que o acusa de ter feito algo que você não fez e, mesmo assim, pela dificuldade de defesa, você aceita e paga.

 

* Artigo de opinião publicado no jornal “A Gazeta”, em 20 de dezembro de 2012