Nunca soube o que é ser vítima de um trote de faculdade. Não sei se, porque dei sorte ou por excesso de zelo. Talvez até, por ter tido a felicidade de usar uma combinação de ambos, o fato é que, em 1985, quando entrei na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), para fazer o meu primeiro curso, engenharia elétrica, consegui me livrar desse abominável, detestável, criminoso e inoportuno “ritual de boas vindas” a que se dá o nome de trote.
Apesar de não conhecer esta modalidade de humilhação, nem por isso, fico menos revoltado quando vejo, todo ano, notícias e mais notícias de vítimas nas faculdades. E noto, inclusive, certo aprimoramento no requinte deste sadismo acadêmico. No meu tempo, o calouro sofria com a cabeça raspada e com um banho de ovo e farinha de trigo, enquanto era obrigado a fazer algumas palhaçadas, no meio de uma roda formada por risonhos e covardes veteranos. Já a caloura, conseguia se livrar de perder os cabelos que, em compensação, eram tingidos com qualquer tipo de substância, desde que, não fosse tintura de cabelo, claro! Hoje, vejo gente sendo chicoteada, esmurrada, obrigada a ingerir elevadas doses de álcool, queimadas com substâncias químicas, privadas do direito de ir e vir, dentre outros absurdos…
Há quem justifique historicamente o trote alegando que se trata de uma tradição secular, iniciada na Idade Média, quando o calouro tinha seus cabelos raspados e sua roupa queimada em decorrência das péssimas condições gerais de higiene da época. Apesar de humilhantes, eram, primordialmente, iniciativas que visavam à saúde pública e ao combate à indesejável proliferação de doenças. A partir daí, a maioria das faculdades da Europa adotou tais procedimentos que, persistiram até hoje, por todos os cantos do mundo, ainda que não tenhamos mais uma justificativa plausível.
Há também o entendimento de que o trote nada mais é do que um ato “hierarquizador”, que estabelece o lugar de inferioridade de quem acaba de entrar numa instituição, perante aqueles que, por estas e outras, já tenham se iniciado. Na verdade, nunca consegui entender a justificativa para um ato desta natureza. Como pode um punhado de babacas, que o calouro nunca viu antes, exercerem tamanho poder sobre ele? Além disso, sempre achei o trote uma cruel inversão de valores. O cara rala e se mata de estudar, para se submeter a este injusto e concorrido sistema de ingresso ao ensino superior público no Brasil e, quando vence e chega lá, é sumariamente punido. Como pode?
Da parte das autoridades, devemos esperar que passem a olhar com mais rigor para os casos de trote, identificando os criminosos e submetendo-os a uma punição exemplar. Todos que tenham participado ativamente das ações e, naturalmente, a própria faculdade, devem ser punidos. A maior parte das agressões são perfeitamente tipificadas pelo código penal brasileiro e, por conseguinte, são crimes com as suas respectivas penas.
Quanto às instituições de ensino superior, é passada a hora de assumir responsabilidades pelos atos de seus alunos, ainda que não sejam cometidos dentro dos limites físicos da instituição de ensino. Isso não interessa! Se a justiça condenar um aluno por prática de trote, ele deve ser expulso da faculdade, através de um processo administrativo regular e, depois, se ele quiser tentar restabelecer seus direitos e a sua vaga, que o faça, pagando a um bom advogado e provocando, desta feita como autor, os nossos tribunais.
Quanto aos calouros, espero que façam de tudo para não se deixarem submeter a esta barbárie. Quando existe covardia e desproporcionalidade, vale tudo para se defender, inclusive o uso da força que, certamente, em casos assim, seriam facilmente identificados como legítima defesa. Além disso, todos os que incitaram à realização do trote deverão ser denunciados, identificados e processados por aqueles que tenham se sentido lesados pelo ato. É o mínimo que se pode esperar de quem acaba de entrar numa escola que, além de preparar futuros profissionais, também deve se prestar ao papel de melhorar o perfil dos cidadãos de nosso país.
Quando isso se tornar uma prática comum, tenho certeza, ainda que demore um pouco, os trotes vão diminuir até o seu total desaparecimento. Mas, enquanto isso não acontece, confesso que terei um estranho prazer ao ter notícias de jovens idiotas, com um futuro pela frente, no início de suas vidas maduras, substituírem a fila da biblioteca pela fila da identificação datiloscópica e da fotografia, que deverão enfeitar a sua primeira e inesquecível ficha criminal.
É bem possível que uma experiência assim, associada à responsabilidade com o cumprimento de uma pena de prestação de serviços gratuitos à sociedade, além do ônus de encher comunidades carentes com providenciais cestas básicas, possam ser suficientes para que estas pessoas consigam a desejada ressocialização, agarrando com unhas e dentes, uma chance nem sempre permitida a todos: a de começar de novo.
HSF
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