Um par de tênis e nada mais (Marcio Caparica)

 Um par de tênis e nada mais

Nosso repórter viajou aos Estados Unidos e tirou a roupa para participar de uma prova pelado. Nada de pudor, número de peito ou frequencímetro. Só muito balanço e diversão em uma corrida na qual short e camiseta não têm vez. Dispa-se dos preconceitos e saiba tudo que acontece quando se corre usando apenas um par de tênis

Por Marcio Caparica | Fotos Kirill Tokarev | Ilustrações Thales Molina

Redação engajada, essa da RUNNER’S WORLD Brasil. A turma costuma viver na pele as reportagens que publica na revista. A editora Patricia Julianelli fez três meses de tratamento para melhorar sua postura e contou para os leitores o efeito do experimento em sua mecânica de corrida. O diretor Sérgio Xavier descobre as corridas mais lindas do mundo vestindo a camisa da revista. O repórter Bruno Favoretto, que perdeu o movimento das pernas em um acidente há 12 anos, começou a correr por meio de um projeto da RUNNER’S e no ano passado completou a Maratona de Nova York em cima de sua cadeira de rodas.

Até que um dia a editora-assistente Julia Zanolli me perguntou: “Marcio, você não quer aproveitar sua viagem para os Estados Unidos e participar de uma corrida pelada para a gente?” Eu planejava cruzar a América de bicicleta e topei o desafio na hora. Essa pauta circula na redação desde o lançamento da revista, esperando a oportunidade certa e um repórter despudorado o suficiente para levar a ideia adiante. Encontramos uma prova que coincidia com a data da minha viagem — e eu não tenho qualquer problema em correr sem roupa. Tudo convergiu para fazer esta matéria acontecer. No meio de tanta gente dedicada, como dizer não?

Como viemos ao mundo

A tarde estava ensolarada quando peguei um táxi até o local da prova, próximo à cidadezinha de Palmerton, na Pensilvânia (EUA). O motorista, ainda no meio do caminho, comentou: “Sabe que tem um resort onde todo mundo fica pelado nessa região aonde você está indo?” “Sei”, respondi. “E é para lá mesmo que nós vamos.” O rapaz arregalou os olhos e dirigiu visivelmente tenso pelos 20 minutos seguintes, até chegarmos ao nosso destino.

A prova escolhida foi a Bouncing Buns (“bumbuns balançantes”, em tradução livre), uma corrida de 7 km em trilha que acontece anualmente dentro do resort nudista Sunny Rest. Em 2010, na primeira edição da prova, foram 20 participantes. Dois anos depois, já éramos 161 corredores. Para não ser pego de calças curtas no dia da corrida, decidi chegar ao hotel um dia antes, a fim de garantir que estaria lá na manhã do evento. Quando o táxi chegou ao resort, pelados e peladas de todos os tipos e tamanhos curtiam o dia de calor ao redor da piscina. O motorista não sabia para onde olhar. Aceitou o pagamento com pressa, me deu o recibo já pisando no acelerador e foi embora sem olhar pelo retrovisor.

Fiz check-in ao lado de um casal que, sem roupa, tranquilamente comprava um refrigerante. O resort é grande, com extensos gramados, vários bosques, muitos trailers e nenhum pudor. Fui me instalar na área de camping e 20 minutos depois, com colchão inflável, saco de dormir e mochila guardados dentro da minha barraca para uma pessoa, dei adeus às vestimentas. A primeira coisa que fiz foi passar protetor solar por todo o corpo. Com uma toalha no braço (essencial para quem vai ficar sentando pelado por aí), óculos escuros na cara e chinelos nos pés, fui para a piscina aproveitar o resto da tarde. Não senti vergonha ao ficar nu, só um estranhamento por estar sem roupa fazendo coisas que normalmente costumo fazer vestido.

Depois de entrar no clima “menos é mais”, nadei, tomei um pouco de sol e comi um hambúrguer no bar. Ao meu lado, um coroa nu como veio ao mundo garantia a música ao vivo, dando novo significado para o termo “um banquinho, um violão”. No começo da noite, juntei-me a um grupo de dez ou 12 naturistas que já estavam havia algumas horas na jacuzzi. Lá, conheci um rapaz que também tinha ido ao resort para participar da corrida e, melhor ainda, já tinha feito a prova antes. “Você tem algum conselho para dar?”, perguntei. “Sim”, ele respondeu, sério. “Cuidado pra não cair.”

Por que correr pelado

Os naturistas são um grupo de pessoas que acreditam que fazer as coisas pelado permite que você tenha um contato mais próximo com a natureza. Então eles nadam pelados, jogam vôlei pelados, comem pelados, cantam pelados, jogam dominó pelados, veem filmes pelados, jogam tênis pelados, dançam na discoteca pelados… Então, por que não correr pelado? A quantidade de atividades que o resort oferece para você fazer sem roupa é impressionante. Só não pode encostar um no outro. Por mais que o senso comum pense o contrário, entre os naturistas a nudez não é encarada como uma coisa sexual.

As naked runs, ou corridas sem roupa, são realizadas em várias partes do mundo: lugares como Austrália, Inglaterra, Canadá, Finlândia e Espanha. Mas a grande maioria delas acontece nos Estados Unidos, onde esse tipo de prova já existe há muitos anos. Normalmente são percursos curtos e não é obrigatório correr pelado, embora a maioria dos atletas deixe shorts e camisetas de lado para participar. Segundo a Federação Brasileira de Naturismo, não existe nenhum evento desse tipo no país.

Número de pernas

O dia da prova amanheceu lindo e ensolarado. Era hora de testar se para correr você só precisa de um par de tênis — e nada mais. Sem roupa já há 15 horas, calcei meu pisante e fui me preparar para a corrida. Para começar, passei mais protetor solar, principalmente nas áreas tradicionalmente menos expostas ao sol. Depois, muito repelente contra insetos. Com tanta natureza ao redor, não queria acabar cheio de picadas, muito menos em regiões mais sensíveis. Para finalizar, vaselina entre as coxas para evitar assaduras. Pensei bem e resolvi aplicar porções generosas em todas as outras dobras das pernas para evitar o atrito. Depois de colocar os óculos escuros, percebi que não tinha onde prender o MP3, então fui sem música mesmo.

A inscrição para a prova começou às 9 da manhã, 1 hora antes da largada. Assim que dei meu nome e paguei a taxa, fui reconhecido como “aquele repórter brasileiro da RUNNER’S que está ligando para cá há semanas”. Virei uma minicelebridade “Então você vai correr sem nada, né?”, perguntou Ron Horn, o organizador do evento, rindo. Com uma caneta, ele escreveu na minha coxa esquerda o número de inscrição. Afinal, não daria para prender o número de peito em lugar nenhum.

Espalhados pelos gramados ao redor da concentração para a largada, dezenas de participantes se aqueciam para a prova. Alguns homens usavam suporte atlético (uma espécie de cueca mais cavada que ajuda a manter as coisas no lugar), algumas mulheres vestiam tops, mas a imensa maioria dos atletas estava completamente nua, não usavam nem a faixa de peito do frequencímetro. Corredores de todas as idades, quase todos homens, faziam tiros, conversavam entre si e se alongavam. Ah, o alongamento. Se você já ficou constrangido ao se inclinar para esticar as pernas, imagine o que é tentar alcançar os dedos dos pés sem nada para cobrir as nádegas.

Às 10 da manhã, debaixo de um sol ardido, todos os corredores se aglomeraram em frente à linha de partida, tentando ao máximo manter uma distância respeitosa uns dos outros. Mr. Horn fez um pequeno discurso sobre o recorde de participantes naquele ano, deu instruções sobre o percurso e anunciou a todos a presença do repórter da RW. Nada de tiro para anunciar a largada: em uma corrida como essa, o sinal para começar a correr foi dado quando o organizador abaixou as calças e disparou o cronômetro oficial. Lá se foram os bouncing buns.

Balança mas não cai

Inevitavelmente, a primeira coisa que você repara em uma prova sem roupa são as bundas. Dezenas e dezenas de bundas sacolejando à sua frente. Bundas grandes, bundas pequenas, bundas lisas, bundas peludas, bundas moles, bundas duras, bundas bronzeadas, bundas brancas, bundas com celulite, bundas sem bunda. Uma fileira de bundas a perder de vista. É tanta bunda que você às vezes se esquece do esforço que está fazendo para correr. Eventualmente, você é ultrapassado por uma mulher, mas a presença delas nesse tipo de prova é menor. Então você vê peitos, peitinhos e peitões, empinados e caídos, balançando a cada passada.

O trajeto era uma pirambeira. Os 7 km do percurso serpenteavam por todo o resort, começando no asfalto, mas logo subindo ladeira acima para entrar nos bosques. Aí o conselho do meu colega de jacuzzi fez sentido. Para este corredor urbano, acostumado com as poucas surpresas do asfalto, correr pelos desníveis de uma trilha entre árvores chega a ser uma experiência tão inovadora quanto correr sem roupa. Foram quase 4 km mato adentro. Cada tropeço numa raiz da trilha me fazia suplicar em silêncio para não rolar ladeira abaixo e me ralar dos pés à cabeça — literalmente.

Os quilômetros finais eram asfaltados, então a principal preocupação passou a ser o calor. O suor escorre e pinga livremente corpo abaixo, sem um elástico de short para detê-lo no meio do caminho ou uma peça íntima que o absorva. Não chega a ser desconfortável, mas é algo inédito. Peço perdão aos leitores e leitoras mais sensíveis para descrever outra sensação inédita. Normalmente, um homem se esquece do amigão lá embaixo durante a corrida — ele fica guardado, preso e protegido. Já numa corrida sem roupa, a história é outra. Nosso companheiro, livre e solto, se faz lembrar o tempo todo, saltando da esquerda para a direita nos trechos planos, pulando para cima e para baixo nas subidas e descidas. Doloroso? Não. Inesquecível, com certeza. Sempre entre as coxas, as bolas não chegam a ser um problema, mas agradeci o tempo todo pela vaselina extra que tive o bom-senso de aplicar.

Prêmios sem-vergonha

Ao fim de 43 minutos de corrida, cruzei a linha de chegada. Sem chip nem qualquer outro tipo de medição eletrônica, os organizadores conferiam os números nas coxas de quem chegava e gritavam o tempo para que outra pessoa anotasse. No resultado oficial do evento, apenas os nomes dos participantes, nada de sobrenomes. Depois da dispersão, os atletas trocavam impressões sobre a prova, tomavam isotônico, comiam frutas e comparavam resultados. Tudo muito parecido com uma prova de corrida tradicional, exceto pelo fato de que todo mundo estava pelado. O barato da serotonina, a satisfação de sentir o sol batendo no corpo todo, a alegria por ter completado uma prova tão divertida e o alívio de terminar a corrida ileso. Todas essas sensações compunham o clima festivo do pós-prova. Como a corrida era pequena, posso afirmar que todas aquelas pessoas estavam felizes, alegres por terem cruzado a linha de chegada e agora estarem compartilhando a experiência com outras pessoas com o mesmo alto astral.

Algumas horas mais tarde, na beira da piscina do hotel, os atletas se reuniram para a entrega dos prêmios, ainda com os números pintados nas coxas. Microfone em uma mão, resultados na outra, chinelos nos pés e nada mais pelo corpo, o organizador Ron Horn entregava troféus — um bebezinho engatinhando, pelado — para os participantes mais velozes de cada faixa etária. E previa, animado, que no ano seguinte eles haveriam de chegar a 200 competidores. Contente, agradeceu minha presença e me convidou a retornar no ano seguinte, algo que, sinceramente, eu adoraria fazer. De lembrança, ironia das ironias, ganhei uma camiseta da prova.

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O Justo e a Justiça Política (por Rui Barbosa)

Para os que vivemos a pregar à república o culto da justiça como o supremo elemento preservativo do regímen, a história da paixão, que hoje se consuma, é como que a interferência do testemunho de Deus no nosso curso de educação constitucional. O quadro da ruína moral daquele mundo parece condensar-se no espetáculo da sua justiça, degenerada, invadida pela política, joguete da multidão, escrava de César. Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos do dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz.

Aos olhos dos seus julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados.

Grande era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção da divindade do papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade afastava do seio de Israel a presença do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas por uma hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era na função de julgar que tinha a sua habitação entre os israelitas a majestade divina. Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando o homem lhes perde o sentimento, que exatamente no processo do justo por excelência, daquele em cuja memória todas as gerações até hoje adoram por excelência o justo, não houve no código de Israel norma, que escapasse à prevaricação dos seus magistrados.

No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de Quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da Sexta-feira subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de formação judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do direito.

O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir; e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: “Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas. Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes houver dito”. Era apelo às instituições hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores não poderia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juizes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal: “Se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates?”

Anás, desorientado, remete o peso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, ainda assim, não, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo. Perante este já muito antes descobrira o genro de Anás a sua perversidade política, aconselhando a morte a Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a efeito a sua própria malignidade, “cujo resultado foi a perdição do povo, que ele figurava salvar, e a salvação do mundo, em que jamais pensou”.

A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem, lhe não acharam a culpa, que buscavam. Jesus calava. Jesus autem tacebat. Vão perder os juizes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele, que a não renegara, vê-se declarar culpado de crime capital: Reus est mortis. “Blasfemou! Que necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia”. Ao que clamaram os circunstantes: “é réu de morte”.

Repontava a manhã, quando a sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juizes legais. Mas juizes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados, para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunais, que se conchavam de véspera nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.

Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis. Não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livres, para condenar, ou absorver. “Que acusação trazeis contra este homem?” assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra civilizada. “Se não fosse um malfeitor, não to teríamos trazido”, foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo, de que não conhecera, pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: “Tomai-o, e julgai-o segundo a vossa lei”. Mas, replicam os judeus, bem sabes que “nos não é lícito dar a morte a ninguém”. O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.

Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, senão de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que se inculca filho de Deus: é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. “Ao mundo vim”, diz ele, “para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade, há de escutar a minha voz”. A verdade? Mas “que é a verdade”? pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a da inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde reina o poder absoluto das trevas. “Não acho delito a este homem”, disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.

Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão da sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde Galiléia. Ora acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetrarca da Galiléia, Heródes Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Heródes, lisonjeando-lhe com essa homenagem, a vaidade. Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici erant ad invicem. Assim se reconciliam os tiranos sobre os despojos da justiça.

Mas Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullam causam inveni in homine isto ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba recrudesce. Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a Quarta defesa de Jesus: “Que ma fez esse ele? Quid enim mali fecit iste?” Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta ainda: “Crucificareis o vosso rei?” A resposta da multidão em grita foi o raio, que desarmou as evasivas de Pilatos. “Não conhecemos outro rei, senão César”. A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador da província romana. O monstro de Cáprea, traído, consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo: “Sou inocente do sangue deste justo”.

E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não compromete. A história premiou dignamente esse modelo da suprema cobardia na justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do justo.

De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pela facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juizes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do atentado, que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz cobarde.

(A imprensa, Rio, 31 de março de 1899,
em Obras Seletas de Rui Barbosa, vol. VIII,
Casa de Rui Barbosa, Rio, 1957, págs. 67-71.)

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Tempos apocalípticos (por Paulo Brossard)

Minha filha Magda me advertiu de que estamos a viver tempos do Apocalipse sem nos darmos conta; semana passada, certifiquei-me do acerto da sua observação, ao ler a notícia de que o douto Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado, atendendo postulação de ONG representante de opção sexual minoritária, em decisão administrativa, unânime, resolvera determinar a retirada de crucifixos porventura existentes em prédios do Poder Judiciário estadual, decisão essa que seria homologada pelo Tribunal. Seria este “o caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de Estado laico” e da separação entre Igreja e Estado.

Tenho para mim tratar-se de um equívoco, pois desde a adoção da República o Estado é laico e a separação entre Igreja e Estado não é novidade da Constituição de 1988, data de 7 de janeiro de 1890, Decreto 119-A, da lavra do ministro Rui Barbosa, que, de longa data, se batia pela liberdade dos cultos. Desde então, sem solução de continuidade, todas as Constituições, inclusive as bastardas, têm reiterado o princípio hoje centenário, o que não impediu que o histórico defensor da liberdade dos cultos e da separação entre Igreja e Estado sustentasse que “a nossa lei constitucional não é antirreligiosa, nem irreligiosa”.

É hora de voltar ao assunto. Disse há pouco que estava a ocorrer um engano. A meu juízo, os crucifixos existentes nas salas de julgamento do Tribunal lá não se encontram em reverência a uma das pessoas da Santíssima Trindade, segundo a teologia cristã, mas a alguém que foi acusado, processado, julgado, condenado e executado, enfim justiçado até sua crucificação, com ofensa às regras legais históricas, e, por fim, ainda vítima de pusilanimidade de Pilatos, que tendo consciência da inocência do perseguido, preferiu lavar as mãos, e com isso passar à História.

Em todas as salas onde existe a figura de Cristo, é sempre como o injustiçado que aparece, e nunca em outra postura, fosse nas bodas de Caná, entre os sacerdotes no templo, ou com seus discípulos na ceia que Leonardo Da Vinci imortalizou. No seu artigo “O justo e a justiça política”, publicado na Sexta-feira Santa de 1899, Rui Barbosa salienta que “por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz”… e, adiante, “não há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados”.   Em todas as fases do processo, ocorreu sempre a preterição das formalidades legais. Em outras palavras, o processo, do início ao fim, infringiu o que em linguagem atual se denomina o devido processo legal. O crucifixo está nos tribunais não porque Jesus fosse uma divindade, mas porque foi vítima da maior das falsidades de justiça pervertida.

Não é tudo. Pilatos ficou na história como o protótipo do juiz covarde. É deste modo que, há mais de cem anos, Rui concluiu seu artigo, “como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.

Faz mais de 60 anos que frequento o Tribunal gaúcho, dele recebi a distinção de fazer-me uma vez seu advogado perante o STF, e em seu seio encontrei juízes notáveis. Um deles chamava-se Isaac Soibelman Melzer. Não era cristão e, ao que sei, o crucifixo não o impediu de ser o modelar juiz que foi e que me apraz lembrar em homenagem à sua memória. Outrossim, não sei se a retirada do crucifixo vai melhorar o quilate de algum dos menos bons.

Por derradeiro, confesso que me surpreende a circunstância de ter sido uma ONG de lésbicas que tenha obtido a escarninha medida em causa. A propósito, alguém lembrou se a mesma entidade não iria propor a retirada de “Deus” do preâmbulo da Constituição nem a demolição do Cristo que domina os céus do Rio de Janeiro durante os dias e todas as noites.

Link da Revista Veja aqui.

A vaquinha e o precipício

Mestre e discípulo caminhavam quando avistaram um casebre. Aproximaram-se e perguntaram como vivia aquela pobre família, pois não viam sinais de comércio ou trabalho por ali. A sua sobrevivência foi atribuída a uma vaquinha que lhes dava leite suficiente para consumo e venda. Ao se afastarem, o mestre ordena então ao discípulo que empurre aquele animal no precipício. Relutante, o discípulo cumpre a ordem.

Durante anos, o remorso por aquele ato perseguiu a mente do executor até que um dia ele resolveu voltar ao local. Ao chegar, se surpreendeu com o que viu. No lugar do casebre havia uma linda casa com jardim exuberante e carro na garagem. Espantado com a aparente prosperidade da família, o discípulo foi perguntar o que havia ocorrido e recebeu a seguinte resposta: “…tínhamos uma vaquinha que caiu do precipício e morreu. Como era nosso único sustento, tivemos de fazer outras coisas, desenvolver outras habilidades que nem sabíamos que tínhamos e, assim, alcançamos o sucesso!”. Não se trata de uma parábola nova, mas, talvez, seja a mais apropriada para o momento atual em que vive o nosso estado.

Pode-se afirmar que historicamente o Espírito Santo nunca tenha gozado de grandes privilégios ou simpatias por parte dos governos centrais, desde que Vasco Fernandes Coutinho aportou, em 1535, em nossa costa. Foram quase 300 anos de abandono até a independência do país, quando então passaram a ser feitos aqui alguns tímidos investimentos. Foi a economia cafeeira e a força imigrante que trouxeram desenvolvimento para nosso estado. Todavia, persistia a sensação de que estávamos sempre a reboque dos federados mais poderosos do entorno e que, a qualquer momento, as regras do jogo poderiam ser mudadas para o benefício alheio, a despeito de nossas necessidades.

De lá pra cá o estado já passou por algumas crises que só foram superadas com muito sacrifício e determinação de seu povo. Recentemente, protagonizamos em Brasília enfrentamentos pela divisão mais favorável dos royalties do petróleo e pela manutenção do FUNDAP. Ainda que tenha havido empenho de nossa bancada federal, foi mais uma luta perdida, pois o desequilíbrio de forças tornava inglória a missão delegada aos nossos representantes. Afinal, o estado representa 2,3 % do PIB e tem um colégio eleitoral de apenas 1,5% do eleitorado nacional. Aos olhos de políticos que só enxergam cifras, não somos nada!

Por isso, é passada a hora de criarmos condições próprias e típicas de atração de negócios que dispensem o inconstante subsídio federal ou que dependa de incentivos financeiros que sempre serão alvo da cobiça dos vizinhos produtores. Para isso, devemos voltar nossa atenção para a infraestrutura (aeroviária, ferroviária, rodoviária), a hotelaria e a especialização de mão de obra. O estado precisa concentrar esforços para se destacar como pólo de excelência em serviços, sem, contudo, abandonar a sua maior vocação portuária e de comércio exterior, pois, nesta seara, temos muito que ensinar ao país.

Caberá aos nossos governantes aplicar toda parcela de recurso próprio possível e o que ainda nos restam dos royalties em estrutura e equipamentos que facilitarão a nossa “independência” futura. Para tanto, certamente, poderão contar com o apoio do bravo povo capixaba, que conhece bem a superação. Não seria logo agora, ao perdermos mais uma “vaquinha”, que fugiríamos à nossa luta!

HSF

Haroldo Santos Filho é advogado, contador, engenheiro e mestre em administração financeira (UnB)

Link: Jornal A Gazeta: aqui