Um Che Guevara bem diferente

che00_320Na última sexta (30/01), entre uma reunião e outra, sem tempo, passei os olhos pelo jornal Valor Econômico e mesmo sem ler, chamou-me a atenção um artigo de opinião, sob o título “o verdadeiro Che Guevara”, do economista francês Guy Sorman, pela inusitada ilustração do texto: um rosto de “Che Guevara” absolutamente “sin ternura“, digna de um vilão barato de filme “B”. Rasguei a página, na hora, e a enfiei no bolso, para ler assim que tivesse um tempinho. Eu precisava descobrir o significado daquele desenho do Che, tão diferente do que estamos acostumados a ver.

Che Guevara não chegou a representar para mim um ícone referencial, durante minha juventude. Eu diria que o seu mundo era muito diferente do meu, só para ser conciso. Feliz ou infelizmente, meus modelos de rebeldia adolescente fugiram dos tradicionais. Escolhi outras formas de preocupar meus pais e voltar as atenções para mim. Todavia, apesar de nunca ter usado uma única camisa com o ídolo da revolução cubana, estampada na frente, ao longo do tempo, fui me interessando pela sua história e pela sua trajetória de vida. É indiscutível a importância e a influência que ele exerceu (e ainda exerce) sobre muita gente, desde aprendizes de revolucionários púberes e com acnes no rosto a governantes responsáveis pelo destino de milhões de pessoas.

Hoje, finalmente li o referido pedaço de jornal rasgado. Fiquei surpreso com a forma direta e agressiva com a qual o autor se refere ao revolucionário. Para quem, como eu, aprendeu a respeitá-lo pelas escolhas que fez, em tese, em benefício de minorias e em nome da liberdade de todo um continente, dando a própria vida por esta causa, a leitura, pra mim, foi como um tapa na cara.

Ainda assim, achei válido o artigo. Para mim, fica claro que, para tudo na vida, sempre há, no mínimo, duas versões. Reproduzo aqui o conteúdo do artigo para que outras pessoas possam também refletir sobre o assunto.

Artigo original em francês, no site oficial de Guy Sorman: aqui.

O verdadeiro Che Guevara
Guy Sorman
30/01/2009

As histórias de Hollywood são muitas vezes absurdas, mas os cineastas normalmente têm o bom senso de não encobrir assassinos e sádicos. O novo filme de Steven Soderbergh sobre Che Guevara, no entanto, faz isso e ainda mais.
Che, o revolucionário romântico, como delineado por Benicio del Toro, no filme de Soderbergh, nunca existiu. O herói da esquerda, com seu cabelo e barba hippies, uma imagem agora icônica em camisetas e canecas de café por todo o mundo, é um mito confeccionado pelos propagandistas de Fidel Castro – uma espécie de mistura entre Don Quixote e Robin Hood.
Assim como aqueles contos que costumas ser exagerados, o mito de Fidel sobre o Che possui semelhança apenas superficial com fatos históricos. A história real, contudo, é muito mais sombria. Algum Robin Hood provavelmente maltratou os ricos e, para cobrir suas pistas, deu parte do saque aos pobres. Na Espanha medieval, cavaleiros como Quixote provavelmente perambularam pelos campos, livrando-os, não de dragões, mas dos poucos muçulmanos restantes.
O mesmo vale para o lendário Che. Nenhum adolescente revoltado contra o mundo ou contra os pais parece resistir à imagem sedutora de Che. Usar uma camiseta do Che é a forma mais rápida e barata de dar a impressão de estar no lado certo da história.
O que funciona com adolescentes também parece funcionar com diretores de cinema eternamente jovens. Nos anos 60, o visual Che, com barba e boina, era pelo menos uma declaração política loquaz. Hoje, é pouco além de um acessório de moda que serve de inspiração para um épico hollywoodiano de grande orçamento. O que virá a seguir? Parques de diversão do Che?
Certa vez, entretanto, houve um Che Guevara de verdade: ele é menos conhecido do que a marionete fictícia que substituiu a realidade. O verdadeiro Che era uma figura mais significativa que seu clone fictício, pois era a encarnação do que a revolução e o marxismo realmente significaram no Século XX.
Che não era humanista. Nenhum líder comunista, de fato, já teve valores humanistas. Karl Marx certamente não era um. Fiéis ao profeta fundador de seu movimento, Stalin, Mao, Castro e Che não tinham respeito pela vida. Era preciso derramar sangue para que um mundo melhor fosse batizado. Quando criticado por um de seus primeiros companheiros pela morte de milhões durante a Revolução Chinesa, Mao observou que inúmeros chineses morriam todos os dias, então, do que importava?
Da mesma forma, Che era capaz de matar e dar de ombros. Treinado como médico na Argentina, optou por acabar com vidas em vez de salvá-las. Depois de ter tomado o poder, Che causou a morte de cinco centenas de “inimigos” da revolução sem julgamento ou mesmo muita diferenciação.
Castro, que também não era humanista, fez o melhor que pôde para neutralizar Che, indicando-o como ministro da Indústria. Como era de se esperar, Che aplicou políticas soviéticas aos cubanos: a agricultura foi destruída e fábricas fantasmas pontilharam a paisagem. Ele não ligava para a economia de Cuba ou seu povo: seu objetivo era buscar a revolução por si só, seja lá o que isso queira dizer, como a arte pela arte.
De fato, sem sua ideologia, Che não teria sido nada além do que outro assassino em série. A propaganda ideológica permitiu-lhe matar em números maiores do que qualquer “serial killer” poderia imaginar e tudo em nome da Justiça. Há cinco séculos, Che provavelmente teria sido um desses padres/soldados exterminando nativos latino-americanos em nome de Deus. Em nome da história, Che, também, viu as mortes como uma ferramenta necessária para uma causa nobre.
Suponhamos, porém, que julgássemos este herói marxista por seus próprios critérios: ele realmente transformou o mundo? A resposta é sim – mas para pior. A Cuba comunista que ele ajudou a moldar é um fracasso indiscutível e absoluto, muito mais empobrecida e menos livre do que era antes de sua “liberação”. Apesar das reformas sociais que a esquerda gosta de alardear sobre Cuba, sua taxa de alfabetização era maior antes de Castro chegar ao poder e o racismo contra a população negra era menos disseminado. De fato, os líderes da Cuba de hoje têm probabilidade muito maior de ser brancos do que nos tempos de Batista.
Mais além de Cuba, o mito de Che Guevara inspirou milhares de estudantes e ativistas por toda a América Latina a perder suas vidas em insensatas lutas de guerrilha. A esquerda, inspirada pelo canto de sereia de Che, escolheu a luta armada em vez das eleições. Ao fazê-lo, abriu caminho para ditaduras militares. A América Latina ainda não está curada dessas conseqüências inesperadas do guevarismo.
De fato, 50 anos depois da Revolução Cubana, a América Latina continua dividida. Os países que rejeitaram a mitologia de Che e escolheram o caminho da democracia e livre mercado, como Brasil, Peru e Chile estão melhores do que nunca: igualdade, liberdade e progresso econômico avançaram como um todo. Em contraste, os países que continuam nostálgicos pela causa de Che, como Venezuela, Equador e Bolívia, estão neste exato momento equilibrados à beira de uma guerra civil.
O verdadeiro Che, que passou a maior parte de seu tempo como encarregado do Banco Central, de Castro, supervisionando execuções, merece ser mais bem conhecido. Talvez, se o épico em duas partes de Soderbergh sobre o Che for bem-sucedido nas bilheterias, seus financiadores queiram filmar uma seqüência mais verdadeira. Certamente não faltaria de material para “Che, a História Não Contada”.
Guy Sorman, filósofo e economista francês, é o autor de “Empire of Lies”. © Project Syndicate/Europe´s World, 2009. www.project-syndicate.org